segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Mensagem de Natal de D. Joaquim Gonçalves





«Natal de abaixamento e transplantes»

1- A festa do Natal vai neste ano ser celebrada no clima de uma complicada crise económica e social, pois não há festa de Deus à margem da vida dos homens, e nem o mundo terá verdadeira festa sem a vinda de Deus. Das festas cristãs, a do Natal é especialmente tecida por esse cruzamento do mistério de Deus com as realidades humanas, entrelaçando a bondade divina e as nossas aflições. Da minha parte, o Natal deste ano inclui também o facto de ser o primeiro que passo com o coração de outra pessoa em mim transplantado. Os dois factos acabam por conjugar-se nesta mensagem natalícia.
No ano transacto passei o Natal aflitivamente suspenso do ritmo instável de um coração cansado, longe da família e da diocese, vigiado em ambiente hospitalar e aquecido em casa de amigos comuns, também eles ausentes da respectiva família por amor do Menino de Belém. Pude assim fazer a experiência viva do Natal dos pobres, dependente dos cuidados de outros, do seu saber e atenção e, finalmente, do transplante de um coração anónimo que apareceu inesperadamente em Janeiro seguinte e substituiu o outro coração exausto. Fiz a experiência dramática de esperar pelo socorro de alguém desconhecido e cuja morte fica envolta na névoa dos segredos da Providência.

2- Esta experiência pode servir de parábola para ajudar a viver o mistério do Natal de Jesus e sugere a resposta à crise que vivemos.
O Natal é Alguém que «vem de longe», como diz o profeta, o «Verbo de Deus, cheio de Graça, de Vida e de Verdade», acrescenta S.João, e se faz Menino frágil, a fim de, mais tarde, poder ser transplantado para o interior de cada um e fazer surgir o homem novo. Paulo de Tarso, de quem andamos a celebrar o bimilenário do nascimento e que conheceu de perto o calor de Jesus Ressuscitado, nunca falou de Jesus Menino nem da poesia do presépio, mas refere-se à vinda de Jesus ao mundo como o primeiro «despojamento» de Deus, um acontecimento surpreendente! Paulo proclamará por toda a parte a surpresa, a necessidade e a plena compatibilidade do coração desse Menino com todos os homens e mulheres do mundo, sendo até possível falar de um «transplante» único porque, ultrapassando as leis da biologia, Paulo quer transpor para cada um dos baptizados «os mesmos sentimentos de Cristo».
Estará aí a vitória sobre a actual crise cultural, económica e social, pois ela nasceu rigorosamente da falta de sentimentos de justiça e até de respeito pelos outros.

3- Neste ano de 2008, o Natal tem de ser, portanto, um Natal de transplantes económicos, culturais e afectivos: de pão e de roupa, de dinheiro e de tecto, para famílias carecidas de quase tudo; de olhos atentos aos vizinhos que aparentam segurança mas vivem em pobreza envergonhada; de afecto paternal e maternal para crianças órfãs de pai ou de mãe; da ousadia de empresários para com os trabalhadores afectados por longo desemprego; do afecto de filhos e filhas casados para com o pai ou mãe que vive uma viuvez recente. E, ainda, de transplantes de médicos e de enfermeiros para os doentes dos hospitais; transplantes de medicamentos e paciência para quem se encontra em convalescença; transplantes do acolhimento leal para os que estão emigrados, em emigração voluntária ou emigração forçada; transplantes de diálogo e fervor do Espírito para os que vivem em comunidades religiosas de vida apostólica e contemplativa; transplantes da alegria de servir para os que exercem actividades públicas de carácter permanente; transplantes dos ventos fortes do Espírito para os que trabalham em terras missionárias; transplantes de sensatez para quem está incumbido de legislar sobre a família.
A sociedade actual tem necessidade urgente destas atitudes que, por sua vez, requerem o «abaixamento das colinas» e a «correcção das veredas», de que falou João Baptista. São transplantes de vivos, que geram viva em quem dá e em quem recebe, e ninguém é tão pobre que não tenha nada que dar, nem tão rico que não precise de nada. Um tal espírito já está a ser uma realidade no coração de muitos portugueses, como revela a recente jornada do «Banco Alimentar contra a Fome», e tornar-se á ainda maior se, além da partilha do que sobra, formos capazes de partilhar algo de que julgamos precisar. Atrevo-me até a pedir um pouco de austeridade voluntária: esse «despojamento» pessoal e familiar destruirá restos de paraísos de consumo construídos nos últimos anos, libertará de necessidades artificiais, e fará crescer o número das coisas que sobram e a alegria do Natal. E ainda que estes gestos não resolvam definitivamente a situação de ninguém, farão sentir a fecundidade do «despojamento» voluntário que prolonga o de Deus, e crescerá a esperança de um mundo em rejuvenescimento. Enchamo-nos de coragem.
Para todos os leitores, seus familiares e amigos, para todos os diocesanos de Vila Real, presentes e ausentes, os votos de um Bom, de um Santo Natal.


Vila Real, 8 de Dezembro de 2008
Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real